Poesias

OLIVER HARDEN       Voltar   Imprimir   Enviar   Email

A Insignificância do Homem em Dostoiévski ( Oliver Harden )

Há escritores que observam o homem de fora, com a frieza dos naturalistas ou a elegância distante dos moralistas, mas Dostoiévski não se contenta com o perímetro da alma, ele desce aos subterrâneos, penetra nos porões onde os pensamentos se contorcem, onde a luz e a sombra travam seus combates inaudíveis. É nesse território que emerge uma de suas intuições mais persistentes, a percepção da insignificância humana. Não uma insignificância trivial ou cínica, mas uma condição metafísica, uma constatação radical de que o ser humano, apesar do desejo de grandeza, carrega dentro de si a marca profunda da fragilidade. A célebre frase, “O homem é um verme, mas é um verme que sonha de se tornar um anjo”, condensa esse paradoxo com uma precisão quase cruel.
 
Dostoiévski não se limita a afirmar a pequenez humana, ele a dramatiza, ele a faz sangrar, ele a expõe na alma de seus personagens. O verme representa o ser limitado, vulnerável, exposto às tempestades da culpa, do sofrimento e do desejo. Já o anjo simboliza esse impulso indomável que o homem tem de se elevar, de conquistar uma ordem superior, de justificar a própria existência perante si e perante o absoluto. O drama não está em sermos um ou outro, mas em sermos simultaneamente ambos, em vivermos na fricção constante entre aquilo que somos e aquilo que desejamos ser.
 
Em Crime e Castigo, esse drama se torna carne na figura de Raskólnikov. Ele tenta se separar da massa comum, certificando-se de que pertence ao círculo dos homens extraordinários, aqueles que supostamente podem atravessar a fronteira moral sem se manchar. O crime, para ele, seria a prova de sua grandeza, o gesto inaugural de sua ascensão. Mas, em vez disso, o assassinato revela a verdadeira natureza de sua interioridade. A grandeza que imaginava possuir dissolve-se no tormento da consciência, e o que emerge é a constatação de sua própria pequenez. A tentativa de se tornar anjo o arrasta para a percepção humilhante de que ainda é, talvez mais do que nunca, verme. O crime não o eleva, o desnuda.
 
Essa tensão entre elevação e queda reaparece em Os Irmãos Karamázov, onde Dostoiévski distribui, quase como arquétipos vivos, três caminhos possíveis para o homem lidar com a própria insignificância. Dmitri é o homem da carne e do impulso, aquele que, incapaz de governar seus excessos, se perde nos labirintos da paixão. Ivan é o homem da razão pura, que diante do sofrimento do mundo conclui que Deus deve ser recusado e que, sem Deus, tudo é permitido, mergulhando, no entanto, no desespero de uma liberdade sem fundamento. Aliócha, por sua vez, é o homem da fé, não uma fé ingênua, mas a fé que reconhece a fragilidade humana e ainda assim vê nela uma possibilidade de renascimento. Juntos, formam uma trindade psicológica que traduz a complexidade do espírito humano, esse espírito que jamais se compreende totalmente e que, oscilando entre a violência do mundo e a promessa de sentido, busca uma saída que raramente encontra.
 
O que Dostoiévski parece nos dizer é que a insignificância não é apenas um traço da condição humana, mas seu próprio campo de batalha. A pequenez física, moral ou espiritual não é um ponto de partida a ser superado, é uma tensão permanente, uma vertigem interior. O homem é pequeno, não porque lhe falte grandeza, mas porque seu desejo de grandeza é desproporcional ao que consegue realizar. Ele é frágil, não porque esteja condenado à ruína, mas porque a consciência de sua fragilidade o assombra e o desafia ao mesmo tempo.
 
As múltiplas interpretações da célebre máxima dostoievskiana refletem essa complexidade. Para alguns, o verbo “verme” simboliza a sujeição do homem às forças naturais, sua dependência do acaso, sua mortalidade inevitável. Para outros, representa o egoísmo humano, essa tendência sempre renovada de sonhar grandezas tão superiores ao seu próprio alcance que acabam por se dissolver na desilusão. Para outros ainda, indica a liberdade humana, a possibilidade de escolher entre a lama e a luz, entre o bem e o mal, entre o desespero e a esperança. Cada leitura ilumina uma faceta dessa condição paradoxal, cada leitura revela um ponto de ruptura dentro da alma.
 
A grandeza de Dostoiévski está precisamente em não resolver essa contradição, em não dar ao leitor uma resposta final ou reconfortante. Ele nos coloca diante de espelhos incômodos, onde vemos a precariedade do que somos e, ao mesmo tempo, a estranha luz que insiste em arder dentro de nossa miséria. A insignificância humana não é, aqui, uma sentença, mas um convite. Um convite à humildade, à responsabilidade, ao reconhecimento de que só podemos aspirar ao alto quando admitimos a profundidade de nossa queda.
 
Talvez por isso seus personagens, tão torturados e tão humanos, permaneçam vivos na memória literária. Eles encarnam o drama universal de sermos pequenos e sonharmos, ainda assim, com o infinito. A metáfora do verme que sonha o anjo é, no fundo, a própria metáfora do homem. Não somos anjos, mas seríamos mais miseráveis ainda se não ousássemos, apesar de tudo, desejá-los. É nesse intervalo entre a lama e a transcendência que se tece a existência humana, com suas culpas, suas quedas, suas redenções e suas infinitas contradições.
 
Oliver Harden

Autor: Eduardo Gomes
Data: 28/11/2025

 

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