O poder ontológico da crença, entre o inexistente e o desejo ( Oliver Harden )
“Ao acreditar apaixonadamente em algo que ainda não existe, nós o criamos. O inexistente é tudo que não desejamos o suficiente.”
A sentença, atribuída a Franz Kafka, revela algo que vai além da psicologia da motivação, trata-se de uma metafísica da vontade. O que Kafka sugere é que o real não é um domínio estático e fechado, mas um tecido permeável à intensidade humana. O mundo, em sua dimensão mais profunda, não é apenas o que se apresenta, mas o que o espírito é capaz de engendrar.
O inexistente, assim, não é mera ausência, mas um território potencial, à espera da centelha da crença. O que não existe não é o que é impossível, mas o que ainda não foi amado o bastante para nascer. Crer, portanto, é um ato de gestação ontológica, é participar do próprio movimento criador do ser.
Kierkegaard, o pensador da fé em sua forma mais paradoxal, afirmava que “a fé começa precisamente onde o pensamento termina”. Em sua filosofia, crer não é aceitar o provável, mas arriscar-se ao absurdo. Abraão, disposto a sacrificar Isaac, não é um fanático, mas o paradigma do homem que compreende que o mundo só se renova quando o impossível é acolhido como possibilidade.
Nesse sentido, a frase de Kafka ecoa o espírito kierkegaardiano, o ato de crer apaixonadamente é o salto que transforma o nada em existência. Não se trata de uma crença passiva, mas de uma ousadia existencial. O homem que acredita não é aquele que espera, mas aquele que age, ainda que tudo pareça desmenti-lo.
Kierkegaard nos ensina que a fé não é um refúgio, mas um risco, o risco de afirmar o ser diante do absurdo. E talvez o inexistente de Kafka seja esse mesmo abismo em que o homem salta sem garantias, confiando que o próprio salto criará o solo.
Em Nietzsche, encontramos o contraponto dionisíaco à angústia de Kierkegaard. Para ele, o homem verdadeiramente livre é aquele que não se resigna ao que já é, mas que recria o mundo à imagem de sua vontade. O ato de crer apaixonadamente em algo que não existe é, em última instância, o ato de afirmar a vida, mesmo diante do caos.
A “vontade de potência” nietzschiana não é mero desejo de dominação, mas força criadora que transforma o impossível em possibilidade. Crer é um gesto estético e ontológico, é dar forma ao informe, sentido ao acaso, beleza ao sofrimento.
Assim, o inexistente é o campo do vir-a-ser, o solo onde germinam as possibilidades que a razão tímida não ousa tocar. Nietzsche desconstrói o niilismo mostrando que o vazio não é ausência, mas matéria bruta da criação. O homem nobre, aquele que acredita com paixão, é o escultor do próprio destino, não espera que o sentido lhe seja dado, ele o cria.
Em Simone Weil, a crença assume um caráter ético e espiritual. Crer, para ela, é um ato de atenção radical, um estado de abertura ao invisível. Diferente de Nietzsche e Kierkegaard, que enfatizam o salto e a criação, Weil nos recorda que o verdadeiro poder da crença não está apenas em afirmar, mas em escutar.
Ela escreve, “A atenção, absolutamente pura e desinteressada, é a forma mais rara e mais pura de generosidade.” Nesse sentido, o acreditar apaixonadamente em algo que ainda não existe é também o exercício da atenção que convoca o ser a manifestar-se. O inexistente se faz real quando o acolhemos com um olhar paciente, quase amoroso.
Simone Weil nos recorda que o desejo puro, aquele que não exige, mas espera, é uma força cósmica. Desejar é criar espaço para o ser. Assim, o inexistente de Kafka pode ser compreendido não apenas como aquilo que não desejamos o suficiente, mas como aquilo que ainda não tivemos coragem ou pureza para desejar corretamente.
Reunindo essas vozes, Kafka, Kierkegaard, Nietzsche e Weil, vemos delinear-se uma visão do humano como ponte entre o real e o possível. O homem é o ser que habita a fronteira entre o que é e o que ainda pode ser. Sua crença, quando autêntica, é uma força poética que molda o mundo.
O jovem que acredita em seu sonho não é um ingênuo, mas um criador em estado embrionário. O doente que acredita na cura não desafia a lógica, mas convoca a potência vital. O coletivo que acredita na justiça não delira, mas se antecipa ao que pode vir a ser.
A descrença, ao contrário, é a forma mais disfarçada de morte. É o consentimento com o nada, a abdicação do poder de criar. O inexistente, portanto, é o que abandonamos por medo, preguiça ou resignação.
A frase de Kafka, lida à luz desses pensadores, torna-se uma síntese da condição humana, somos condenados a crer, porque é pela crença que existimos. Tudo o que chamamos de civilização, arte, ciência ou amor nasceu de uma crença anterior à evidência.
Crer apaixonadamente é, pois, resistir à entropia do espírito, é desafiar o peso da inércia. A crença é o sopro do ser sobre o vazio. O inexistente, afinal, é apenas o real à espera de um olhar ardente.
Em um mundo saturado de descrença e ironia, Kafka nos devolve a lembrança de que a realidade começa onde começa o desejo verdadeiro. O impossível não é o que não pode ser, é o que ainda não foi suficientemente amado para existir.
Autor: Eduardo Gomes Data: 01/11/2025
|