Poesias

TEXTOS D TERCEIROS 01            

A falta faz Poesia ( Glória Leal )

Trabalho publicado originalmente no Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1992/1993, Editora Relume-Dumará, e na CONTATO  Revista Brasileira de Comunicação, Arte e Educação, Ano 2, No. 5

La raiz del lenguaje es irracional y de carácter mágico. El danés que articulaba el nombre de Thor o el sajón que articulaba el nombre de Thunor no sabia si esas palavras significaban el dios trueno o el estrépito que sucede al relámpago. La poesia quíere volver a esa antigua magia.

Sín prefijadas leyes, obra de un modo vacilante y osado, como si caminara en la oscuridad. Ajedrez misterioso la poesia, cuyo tablero y cuyas piezas cambian como en un sueño y sobre el cual me inclinaré después de haber muerto.

Jorge Luis Borges 1

O anjo Damiel em "Asas do Desejo" de Wim Wenders torna-se humano por amor  a uma mulher. No final do filme ele escreve: "Eu sei... agora... o que... nenhum anjo... sabe". O que Damiel sabe, segundo Betty Fuks,2 é que a condição de mortal faz o sujeito buscar a imortalidade no desejo. Por sua vez, a trapezista Marion conquistou a angelitude ao perceber que a vida e os objetos que nela desfilam são apenas transitórios, mas nem por isso menos belos.

Stuart Schneiderman 3 diz que imortal significa simplesmente não mortal e não mortal nem sempre quer dizer vivo para sempre ou eternamente. Não mortal é também uma característica dos mortos. "Só os vivos são mortais. A busca da imortalidade, que geralmente interpretamos como uma busca da vida eterna, um desejo de negar a morte, é apenas outro nome para o desejo da morte."

Desejo de vida. Desejo de morte. Desejo súbito de fazer uma poesia. Tão necessária. Uma que leve embora essa angústia, o soluço engasgado. Uma que traga de volta o sonho. Poesia é tentativa de realização de desejos. Difusos, confusos mesmo, os sentimentos só serão entendidos pelo autor depois. Depois de dar à luz sua poesia.

Ser falante pode ser praga mas ser escrevente é bênção. É um dos possíveis destinos da pulsão. De vida? De morte? O poeta não vive tais dicotomias. Escrever poesia é lidar com o mistério sem o compromisso, aliás impossível, de explicá-lo.

Se queremos explicar o mistério, somos cientistas. Se o respeitamos, mesmo privando da sua identidade, somos poetas e dizemos coisas que não sabíamos saber. Fernando Pessoa 4 pergunta:

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

O mistério, o inusitado, o imprevisível convivem como a poesia. Também na psicanálise. Entre uma linha e outra, nos pedaços em que não se escreve nada, aí ele surge. O poeta e o Inconsciente falam por enigmas.

Mi vida que no entiendo, esta agonia
De ser enigma, azar, criptografia
Y toda la discordia de Babel.

Jorge Luis Borges 1

Escrever como quem inspira (um verso) e expira (outro verso). Exercício respiratório, associação livre de idéias, catarse, espasmo, orgasmo, seja o que for, faz bem. Apesar do sofrimento de não conseguir dizer o que se deseja. Como sempre. Apesar de o Desejo não se inscrever, realiza-se, por alguns instantes, o desejo de fazer uma poesia. Plantar amores-perfeitos, narcisos e bromélias na borda do vazio existencial.
Lacan 5 diz que em toda a forma de sublimação o vazio será determinante e que toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio. Sublinha a importância da Linguagem por lidar com o significante que é "aquilo que, na ordem das artes, confere sua primazia à poesia."

Jorge Luis Borges 1, no início de "El Golem", usando o termo arquétipo ao invés de significante, concorda com o pensamento lacaniano:

Si (como ei griego afirma em ei Cratilo)
El nombre es arquétipo de la cosa
En las letras de rosa está la rosa
Y todo el Nílo en la palabra Nílo.

A linguagem precede o homem, é condição fundante do humano. Denunciadora e encobridora da Falta, ela nos impele à comunicação e nos remete à solidão. Linguagem é crime e castigo. Crime de Adão e Eva, que comeram o fruto proibido do saber e descobriram a sexualidade. Assim, foram expulsos do paraíso animal e condenados à liberdade. Perdemos o instinto, esse fabuloso programa de comportamentos, e ganhamos a pulsão, essa desconhecida.

Ganhamos a dúvida (quem somos? para que somos? somos?), a possibilidade de morrer (o que será então de mim?) e o desejo de fazer de conta que somos ainda animais naturais e que nossos desejos podem ser satisfeitos. Assim como as necessidades dos animais. Pura ilusão. O desejo do homem é insaciável. A completude tão almejada é impossível. Isto porque o desejo é definido pelo vazio. Um desejo aponta sempre para outro desejo e assim prosseguimos na crença insana de que existe um ou vários objetos adequados que podem ser encontrados no mercado da vida. À ilusão do encontro chamamos felicidade. Essa eternidade que logo termina.

Segundo Lacan o Inconsciente é da ordem do não realizado e é estruturado como uma linguagem. Ambos são regidos pela ordem simbólica. Os símbolos são criados a partir da ausência da coisa. Falamos e cantamos as ausências, o perdido e o nunca encontrado. Do "fort-da" do netinho de Freud até Fernando Pessoa 4:

E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase.
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

O ato poético lida com o impossível porque revela algo do Real, que é da ordem do impossível. Mas o poeta insiste, insiste em simbolizar o Real e seus infinitos desdobramentos. Insiste no desejo, ou nele o desejo insiste, de fazer outra poesia. Uma que diga melhor o que se quer dizer e não consegue.

Poesia

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade 6

O conteúdo latente do poema, como o do sonho, também é mais rico que o manifesto. O poeta aspira ao poema perfeito porque a vida não é perfeita nem completa e ele se sente completo ao escrever. Mas o poeta escreve sem saber por quê.

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste.
Sou poeta.

Cecília Meireles 7

O sentimento poético que vive em todos nós não pode ser transposto para o papel ou para a voz sem perda de substância. Algo se perde na transposição, como o objeto "a". Acontece que poesia se faz com palavras. As idéias e afetos servem como substrato. Há que transpirar o inefável e isto exige suor. Não é só derramar uns tantos sentimentos no papel, achar bonito e atravessar melhor a noite. Para a associação de idéias (livre como nenhuma fala de analisando) tornar-se arte, deverá ser trabalhada. Idéias e afetos são areia e água, argamassa da construção concluída "só depois". Então você acorda e vai ler o lindo poema da véspera. Acha um horror. Fuma dois cigarros em seguida, toma algumas providências caseiro-burocráticas e vai dar mais uma espiada no papel. Lê agora como se fosse de outro e de fato o Inconsciente é o discurso do outro. Resolve que pode melhorar o texto e aí começa a carpintaria.

É um trabalho letra a letra, palavra a palavra, linha a linha. Pouco sobra, quando sobra. Michelangelo divide as artes em "artes de pôr", como a Pintura, e "artes de tirar", como a Escultura. Na poesia ocorrem esses dois movimentos. Para que, além de terapêutica, seja uma boa poesia, é necessário primeiro estender os sentimentos livremente no papel e só depois fazer o corte de palavras. Isto confere intensidade ao texto e arruma seu coração.

A incompletude, a vazio, a angústia, a morte são muito falados na Poesia. O comum dos mortais sofre das mesmas perplexidades dos poetas. Assim sou eu. Assim é você. Monte de linhas embaraçadas, monte de palavras engasgadas, monte de todas as coisas vividas e morridas. No mar dos sentimentos, o poeta pesca suas palavras. O céu é do condor e a poesia, assim como a praça é de todos.

Borges 1 dedica seu livro Fervor de Buenos Aires a quem o ler:

Si las páginas de este livro consienten algun verso felíz, perdóneme el lector la descortesia de haberlo usurpado yo, previamente. Nuestras nadas poco diferen, es trivial y fortuita la circunstancia de que seas tú el lector de estos ejercícios, y yo su redactor.

Recomendo fazer poesia, ou tentar. Cantar os seus exílios: paraíso perdido, mãe, pai, marido que foi embora, cidade natal, infância. Cantar até sentir que não está exilado nem sozinho. Somos parte de tudo e tudo parte de nós. Nada passou. Nada se passou a não sei um arrepio. De vida, de morte. Sossega, criança. Você morreu tantas vezes que já deveria estar acostumada.

A morte é a curva da estrada.
Morrer é só não ser visto.

Fernando Pessoa 4

O poeta russo Sierguei Iéssienin suicidou-se num quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado. Antes de morrer escreveu, com o próprio sangue, a última poesia. Seu amigo Maiakóvski8, que continuou vivo por mais uns anos, mesmo sabendo que "Nesta vida morrer não é difícil / O difícil é a vida e seu ofício", declarou no poema dedicado ao jovem Iéssienin:

Talvez, se houvesse tinta no Inglaterra
Você não cortaria os pulsos.

Escrever poesia pode salvar a sua vida. Pelo menos de ser aborrecida, pouco vivida, distraída. Ajuda a conviver com o espanto de estar vivo desconfiando que vai morrer. Também salva a vida dos seus mortos, imortalizando-os. Ou enterrando no papel o que tem ser enterrado. O luto não precisa ser patológico.

Memória

Neste invento contra a morte
que é a memória
você fica comigo
fica sempre
E quando eu não mais lembrar
é o sinal
de que você foi embora
Afinal
morrer não é assim como se pensa
enquanto se pensa
Morrer é se perder de sua história.

Texto de Glória Leal 9 recebido em 10/02/2006. 

Notas bibliográficas:
 
1 Borges, Jorge L. Obra Poética. Emecé Editores, Buenos Aires, 1977.
2 Fuks, B. B. "Asas do desejo, signo do amor", in Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1991.
3 Schneiderman, Stuart. Jacques Lacan – A morte de um herói intelectual. Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 1988.
4 Pessoa, F. Obra Poética. Editora Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 1977.
5 Lacan, J. "O Problema da Sublimação" in O Seminário, Livro 7, A Ética da Psicanálise. Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 1988.
6 Drummond, Carlos. Poesia Completa e Prosa. editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1977.
7 Meireles, C. Obra Poética. Editora Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 1977.
8 Maiakovski, V. Poemas. Perspectiva. São Paulo, 3a edição, 1985.
9 Leal, G. Polietama II. Editora Timbre-Taurus. Rio de Janeiro, 1992.

Formatado por Rosângela Aliberti.

Autor: Eduardo Gomes
Data: 10/02/2006


 
 

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