A Louca da Casa: A Imaginação como Potência de Mundo. ( Oliver Harden )
O Nascimento da Loucura Criadora:
Santa Teresa d’Ávila, em suas Moradas, referiu-se à imaginação como “a louca da casa”. A expressão, aparentemente depreciativa, revela, no entanto, uma verdade paradoxal: aquilo que parece desvario é, em profundidade, a centelha que permite ao espírito humano escapar da aridez do real. Teresa, mística que conhecia as tormentas da alma, percebia a imaginação como força insubmissa, inquieta, capaz de perturbar tanto a oração quanto a vigília da razão.
Mas que seria do homem sem essa “louca”? Seríamos apenas escrivães do existente, cronistas do já dado, prisioneiros de uma realidade opaca. A imaginação, ao contrário, é o que desarruma para fecundar, o que desestabiliza para abrir caminho. Ela é, como disse Bachelard, “a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção” (A Poética do Espaço), isto é, a potência de não se contentar com o visível, de transformar uma chama em sol, uma pedra em templo, uma palavra em universo.
Razão e Imaginação: A Tensão Necessária.
A razão é a arquiteta que ergue colunas, a imaginação é o vento que sopra entre elas. A primeira delimita, a segunda transgride. Uma edifica muros, a outra inventa portas. No entanto, não são inimigas, mas forças em tensão. A ciência nasce desse diálogo: como afirmou Einstein, “a imaginação é mais importante que o conhecimento, porque o conhecimento é limitado”.
Nietzsche, em A Origem da Tragédia, já havia notado que o homem precisa tanto da medida apolínea quanto da vertigem dionisíaca. A imaginação é o Dioniso interior, louco e fecundo, que quebra as amarras da lógica. Sem ela, a vida seria apenas cálculo; com ela, a existência se torna obra de arte.
A Imaginação como Véu da Verdade:
Mas não nos enganemos: a imaginação não é apenas brincadeira estética, é necessidade existencial. Nietzsche, em Além do Bem e do Mal, advertiu que “não suportaríamos a verdade nua”. A verdade, em sua crueza, nos esmagaria. Precisamos da imaginação como véu, como metáfora, como ilusão vital.
Ela fabrica deuses quando o deserto da vida ameaça, inventa esperanças quando o abismo se abre, cria narrativas quando o silêncio do universo se torna insuportável. É ela, e não a razão, que nos permite sobreviver ao absurdo, que nos concede a coragem de continuar.
Dostoiévski e a Imaginação como Abismo:
Dostoiévski, mestre da sondagem psicológica, compreendeu que a imaginação pode ser tanto redenção quanto perdição. Em Memórias do Subsolo, vemos um homem esmagado não apenas pelo real, mas pelas projeções que sua mente fabrica incessantemente. A imaginação pode nos lançar ao delírio da esperança, mas também ao inferno da obsessão.
A “louca da casa” é ambígua, como toda força vital. Ela pode nos elevar à criação de mundos ou nos aprisionar em fantasmas. O homem do subsolo não vive na realidade, mas em cenários imaginados, diálogos inventados, ressentimentos dramatizados. E não é justamente isso que nos caracteriza enquanto humanos? Viver não apenas o que é, mas também o que poderia ter sido.
A Imaginação como Potência de Futuro:
Bachelard, em A Poética do Devaneio, insiste que “a imaginação não é, como se diz às vezes, o poder de formar imagens da realidade; é o poder de libertar-nos do imediato, de abrir-nos ao futuro”. É nessa abertura que reside sua loucura: ela não se contenta com o agora, mas projeta, sonha, deseja.
Não haveria ciência sem hipótese, não haveria filosofia sem metáfora, não haveria amor sem o delírio de imaginar no outro algo que ultrapassa sua aparência. A imaginação é a argila invisível de todos os projetos humanos.
Loucura, Liberdade e Criação:
Chamá-la de louca, portanto, não é insulto, mas homenagem. Pois somente o louco, como nos lembrava Foucault, é capaz de escapar ao regime da norma, da utilidade e da repetição. A imaginação é a loucura mais lúcida do homem, a insurreição permanente contra a tirania do real.
Quando a realidade pesa como chumbo, é a louca da casa que nos visita. E sua visita é tanto ameaça quanto dádiva, tanto vertigem quanto esperança. Ela nos lembra que a vida não é apenas aquilo que nos acontece, mas aquilo que ousamos inventar.
Conclusão: O Delírio que nos Salva.
Sem imaginação, não haveria Homero nem Dante, não haveria ciência nem utopia, não haveria sequer a capacidade de suportar a dor. O homem é o animal que imagina, e por isso mesmo é também o animal que transcende.
A “louca da casa” é o anjo e o demônio que habitam o mesmo quarto. É ela quem perturba, mas também quem consola, quem devora, mas também quem cria. Talvez seja louca, sim, mas é dela que depende o milagre mais raro: o de transformar a vida em obra.
Autor: Eduardo Gomes Data: 23/08/2025
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