Sem infernos, para ninguém: ( Edward Magro )
Sou de uma geração de ateus altamente influenciada pela Teologia da Libertação. Não me pergunte por quê, mas entre a resposta lacônica — “idiossincrasias da existência política” — e a mais provável — “o encantamento do mundo” proposto por seus pensadores —, é essa segunda que mais me alcança. Digo isso porque uma frase me martela a cabeça há pelo menos cinco anos:
“É do inferno dos pobres que se faz o paraíso dos ricos.”
Essa frase-pensamento, seca e irrefutável, poderia muito bem ter sido dita por Marx, Spinoza ou Schopenhauer — no limite, talvez até por Nietzsche. Mas não foi. Foi dita por Lula. Sabedoria colhida no seu caminhar existencial, de retirante a presidente.
Pouca gente lhe deu atenção quando a pronunciou, há mais de cinco anos, pouco depois de sair de uma prisão injusta e arbitrária — prisão forjada por um sistema corrompido, sentenciada por um juiz corrupto.
Frase de impiedosa clareza, revela como o brilho da riqueza capitalista repousa sobre as sombras da miséria alheia. Simples e, literariamente, tão elegante quanto a de Tolstói: “Os ricos farão tudo pelos pobres, menos descer de suas costas.”
Tolstói a escreveu em um mundo rural, nos primórdios de um capitalismo incipiente na distante Rússia czarista; Lula a disse em um capitalismo plenamente instalado, ressuscitado de várias crises que o haviam levado à beira da morte, mas sempre ávido por concentrar as riquezas humanas.
Ambos, cada um à sua maneira, não se preocuparam apenas em descrever um sistema econômico, mas em traçar a radiografia moral de uma civilização que normalizou o sofrimento como alicerce do conforto.
A História, por testemunha, mostra que o capitalismo, esse engenhoso artifício de promessas, é incapaz de promover qualquer forma de bem comum que não seja ilusória ou esporádica. Ele concentra, por estrutura, o que é produzido em comum nas mãos de poucos, enquanto transforma o tempo, o corpo e o desejo da maioria em mercadoria bruta. A desigualdade, longe de ser um defeito, é sua condição de funcionamento. O paraíso, portanto, é escasso por projeto — e, mais cruel ainda, só se ergue sobre a condenação dos demais.
Spinoza, em sua serenidade racional, advertiria que nenhum gozo fundado na servidão pode ser chamado de bem-aventurança. A verdadeira liberdade, diria ele, está na potência de existir conforme a razão — o que exige não a dominação de uns sobre os outros, mas a construção de uma ordem comum onde todos possam florescer. Onde há exploração, há paixão triste. E onde imperam as paixões tristes, não pode haver liberdade. Mesmo a alegria dos ricos é um cárcere disfarçado.
Schopenhauer, lúcido, nos lembraria que o mundo, tal como o conhecemos, é feito de dor incessante. “A vida é sofrimento”, escreveu. Mas há graus. O sofrimento que se impõe deliberadamente aos outros em nome do lucro é não apenas inevitável — é injustificável. O sistema atual não é apenas trágico: é cruel. A resignação pode ser virtude metafísica, mas não política.
Nietzsche, avesso a qualquer piedade moralizante, enxergaria na crítica à desigualdade uma expressão do ressentimento dos fracos. Ainda assim, mesmo ele, paladino da superação, jamais confundiria grandeza com acumulação. O que combateu não foi a desigualdade natural dos espíritos, mas a domesticação social que impedia a criação de novos valores. O que Nietzsche condenaria é o conformismo, não a aspiração a um mundo mais digno. Seu chamado à transvaloração dos valores poderia ser relido hoje como desafio: seremos capazes de reinventar o mundo sem cair nas armadilhas da moral de rebanho?
Marx, enfim, o mais concreto e humano, o mais humanamente concreto entre eles, oferece não apenas diagnóstico, mas perspectiva histórica. O paraíso universal é uma miragem — mas a justiça, não. “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, escreveu, recusando qualquer salvação vinda de cima. A superação do capitalismo não é promessa de um Éden, mas de uma sociedade em que a exploração não seja norma legal e o trabalho não seja condenação perpétua. Não se trata de criar o céu na Terra, mas de abolir os infernos.
A ideia de paraíso me parece, talvez, uma nostalgia teológica que abandonei há muito, mas que, renitente, se infiltra até mesmo nos meus projetos seculares, pois o desejo que a sustenta é legítimo: cessar o sofrimento imposto, viver com dignidade, não ser instrumento da riqueza alheia. Esse desejo, ainda que inalcançável em sua plenitude, pode — e deve — ser organizado politicamente. Não há um paraíso para todos, mas pode haver um mundo onde o inferno não seja condição para a felicidade de ninguém.
A sociedade socialista, enquanto horizonte, não promete redenção final. Promete apenas a recusa da barbárie como norma, a repartição racional do que é produzido por todos, a extinção da propriedade como forma de poder sobre os outros. Seu projeto não é de perfeição, mas de justiça. E a justiça, essa sim, pode ser compartilhada.
Assim, talvez devamos renunciar à ideia de paraíso como fim. Mas não devemos renunciar à ideia de mundo como casa comum.
Se não nos é dado construir o Éden, ao menos que desativemos os fornos do inferno.
A lucidez exige isso. A empatia e a dignidade também. Afinal, é por elas que a humanidade se sustenta, e é para elas que vale a pena existir.
Edward Magro
Autor: Eduardo Gomes Data: 03/08/2025
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