Poesias

OLIVER HARDEN       Voltar   Imprimir   Enviar   Email

A imagem inaugural, Schopenhauer e a tragédia da convivência. ( Oliver Harden )

A cena é simples, mas poderosa, porcos-espinhos, acuados pelo frio do inverno, buscam calor uns nos outros. Contudo, sua aproximação não se dá sem custo. Cada gesto de contato é também um gesto de ferida. O espinho do outro fere, mesmo quando o movimento que o conduz é o amor ou a necessidade. Afastam-se para cessar a dor, mas o frio os obriga a tentar de novo. Este é o dilema, tal como o formulou Arthur Schopenhauer no século XIX, um eterno vai-e-vem entre o isolamento e a comunhão, entre o desejo e a defesa, entre o vínculo e a solidão.
Schopenhauer vê nessa metáfora uma verdade profunda sobre o humano, somos seres atravessados pela vontade cega de viver, mas marcados por uma constitutiva incapacidade de coexistir sem fricção. A convivência, longe de ser um bem em si, é um campo de embates, desconfortos e defesas. Assim, o filósofo propõe que o indivíduo sábio seria aquele que, reconhecendo esse dilema, aprende a manter uma distância “certa”, nem fria demais, nem próxima demais, de seus semelhantes.
No entanto, essa “justa distância” é uma utopia, como medi-la, como mantê-la, como defini-la sem errar por excesso ou falta? A existência relacional humana é uma arte trágica, pois não existe intimidade sem risco, nem isolamento sem sofrimento. Esta é, talvez, a primeira lição do dilema, viver com os outros é caminhar sobre espinhos.
Freud, o mal-estar e a domesticação dos espinhos
Sigmund Freud, ao reler Schopenhauer, reconhece nesse dilema um dos fundamentos do que chamou de mal-estar na civilização. A cultura, diz Freud, é a tentativa de tornar a vida em comum possível. Para tanto, ela impõe renúncias pulsionais, reprime desejos, cria códigos de conduta e moralidade que funcionam como amortecedores entre os espinhos individuais. O “porco-espinho civilizado” seria aquele que aprendeu a conter seus impulsos e a modular sua presença no espaço do outro.
Mas o preço dessa domesticação é alto. Quanto mais civilizados, mais recalcamos, mais substituímos o desejo genuíno por máscaras sociais, mais habitamos formas ocas de convivência. A hipocrisia, o silêncio forçado, a cordialidade performática são estratégias de sobrevivência no terreno dos espinhos. E, ainda assim, a tensão persiste, o outro continua sendo, ao mesmo tempo, objeto do nosso anseio e da nossa inquietação.
A psicanálise, nesse sentido, não oferece um refúgio, mas uma chave de leitura, o laço humano é, desde o início, uma negociação entre Eros e Thanatos, entre o amor e a destruição. Amamos, mas desejamos dominar. Desejamos proximidade, mas tememos dissolver-nos nela. A cultura é o palco onde esses conflitos se encenam, e o sujeito é o ator trágico que nunca deixa de sangrar em cena.
A ética da distância, Levinas e o rosto do outro
Enquanto Freud enfatiza os mecanismos psíquicos e Schopenhauer os movimentos da vontade, Emmanuel Levinas desloca o dilema para a esfera da ética. Para ele, a alteridade do outro não é um obstáculo à relação, mas seu fundamento. O rosto do outro, diz Levinas, não pode ser possuído, reduzido, apropriado. Ele nos interpela, nos exige responsabilidade, nos convida à escuta e ao cuidado.
Neste sentido, os espinhos do porco-espinho não são meramente um incômodo inevitável, eles são a marca da irredutibilidade do outro, de sua resistência a ser transformado em reflexo do eu. O outro nos fere porque é outro. Porque não se encaixa, não se dobra, não se submete. E é precisamente aí que nasce a ética, no reconhecimento da dor que a presença do outro pode causar, e na decisão de não recuar, de permanecer apesar disso, de aceitar a fragilidade do encontro como espaço de sentido.
Na leitura levinasiana, o dilema do porco-espinho deixa de ser um problema a ser resolvido, e torna-se uma tensão a ser sustentada com dignidade. O verdadeiro humano é aquele que suporta a dor do outro sem se anestesiar, que se expõe à interpelação alheia mesmo sabendo que será ferido, porque reconhece que, sem o outro, a existência perde densidade.
O amor como ferida e milagre, Buber, Weil e a ética do calor
Martin Buber, ao propor sua famosa distinção entre “Eu-Isso” e “Eu-Tu”, também dialoga com esse dilema. Para ele, a relação verdadeira não é aquela em que o outro é instrumentalizado, convertido em objeto, mas aquela em que o outro é acolhido em sua inteireza, em sua presença viva e imprevisível. Essa relação, contudo, não pode ser forçada nem garantida, ela acontece quando há abertura, reciprocidade, encontro real. E esses momentos são raros, preciosos, quase sagrados.
Simone Weil, por sua vez, nos lembra que “a ausência é mais cruel do que a dor”. Amar é sempre arriscar-se ao sofrimento, mas não amar é condenar-se ao vazio. A ausência de vínculos, de afetos, de relações intensas, não nos poupa da dor, apenas nos expõe a uma outra forma dela, mais silenciosa, mais corrosiva, a dor da insignificância.
O dilema do porco-espinho, então, se converte num convite, amar com espinhos, viver com cuidado, aceitar que o calor da intimidade é feito de cicatrizes, e que a convivência não é a eliminação da dor, mas sua transfiguração em laço, em ética, em poesia. Como escreveu Rilke, “o amor consiste nisto, que dois solidões se protejam, se toquem e se saúdem.”
Conclusão, o dilema como espelho da alma moderna
Na era da hiperconectividade e da solidão digital, o dilema do porco-espinho ganha nova urgência. Estamos mais próximos tecnicamente, mas mais distantes afetivamente. Nossos espinhos se converteram em filtros, bloqueios, ironias defensivas. Evitamos o calor humano por medo da dor, mas morremos de frio por dentro.
Cabe então à filosofia, essa arte de escavar a alma, nos lembrar de que a vida com os outros sempre será um campo de riscos. Mas é nesses riscos que se encontra o sentido. A maturidade não está em evitar os espinhos, mas em aprender a manejá-los com nobreza. Em saber recuar quando necessário, mas também aproximar-se quando possível. Em entender que o outro não é um espelho nem um inimigo, mas um abismo que nos convida à travessia.
O dilema do porco-espinho é, em última instância, o dilema da existência, ser é tocar e ser tocado, ferir e ser ferido, aquecer e ser aquecido, e, mesmo assim, escolher continuar.
Oliver Harden

Autor: Eduardo Gomes
Data: 10/07/2025

 

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