O Rio da Condição Humana ( Oliver Harden )
E o rio corre. Corre, como quem finge saber o destino, como quem finge que flui, mas na verdade se arrasta em espirais de hesitação e de engano. Seu curso, embora pareça espontâneo, é a metáfora mais íntima de nossa condição, aquela de quem vive entre o medo e a ilusão, entre o abismo da verdade e a ponte frágil da aparência. O rio é o tempo, é o eu, é o outro, é tudo aquilo que se move sem cessar, mas que jamais chega a ser plenamente.
Entre o escutar e o não ouvir, o ser humano oscila. Ouve o ruído do mundo, mas recusa o sussurro do destino. Acredita, com ingênua arrogância, que o céu, quando resolve cair, só o faz sobre a cabeça do outro, como se a desgraça fosse sempre um espetáculo alheio, como se a tragédia obedecesse à lógica do merecimento e a dor fosse um mapa que exclui os próprios passos. Esquecemos que a chuva é universal, e que o trovão, por vezes, é apenas o aviso de um silêncio mais profundo.
Vivemos num teatro onde se veste o belo, mas se exala o conveniente. As vestes da virtude escondem o odor da conveniência, e o perfume das aparências mascara a podridão das intenções. O belo, hoje, tornou-se a camuflagem do útil, a estética tornou-se a armadura da falsidade. Sorrisos se tornaram armas, suaves, mas letais. A boca se curva, mas não em afeto. O riso, muitas vezes, não acolhe, mas afasta, distancia, expulsa. Não são poucos os que sorriem apenas para fazer da sua presença uma sentença, e não uma bênção.
E há aqueles apoios que, na ilusão de amparo, são apenas o peso da tampa que fecha o caixão do nosso entusiasmo, porque nem todo apoio ergue, alguns apenas pressionam, silenciam, sufocam. A mão que se estende pode ser a mesma que empurra. A ajuda pode conter o cálculo, a solidariedade pode esconder o sadismo disfarçado de piedade. Ninguém quer o outro livre, pleno, desperto, quer-se o outro domesticado, útil, espelho de um narcisismo doente.
E, no entanto, no fundo desse rio, que corre, hesita e engana, jaz uma lei imutável: a natureza não muda. Pode-se ensinar moral ao escorpião, mas ele picará, mesmo que a superfície seja o dorso que o salva da morte, mesmo que a mordida condene a ambos, pois o instinto sobrevive ao raciocínio, o impulso sobrepõe-se à gratidão. O escorpião não fere por malícia, mas por essência. Sua verdade é pungente, e a pungência é sua forma de existir. A tragédia não é que ele pique, mas que a confiança insista em esquecê-lo.
Assim é o humano, rio e escorpião. Flui, mas repete. Move-se, mas retorna sempre ao ponto onde a ilusão começa. Entre o medo de ser e a ilusão de estar salvo, constroem-se pontes de palavras, máscaras de emoções e paisagens artificiais de convivência. Mas o fundo, o fundo permanece intacto, ali onde as águas escuras da alma nunca se tornam transparentes, ali onde a verdade espera, imóvel, que o rio enfim reconheça que corre não para o mar, mas para dentro de si mesmo.
E talvez, apenas talvez, ao reconhecer que nem todo sorriso é puro, que nem todo apoio salva, e que nem todo escorpião pode ser curado, a correnteza se torne mais lúcida, menos ingênua, mais poética. Porque viver não é crer que tudo está bem, mas aprender a navegar com consciência entre as margens do medo e os redemoinhos da ilusão, e mesmo assim seguir, mesmo assim sonhar, mesmo assim não desistir de ser rio.
Autor: Eduardo Gomes Data: 16/06/2025
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