Poesias

OLIVER HARDEN       Voltar   Imprimir   Enviar   Email

O Abismo e os Sonhos: A Genialidade Visionária de Fernando Pessoa ( Oliver Harden )

Há espíritos que não pertencem ao tempo que os contém, mas que, como um espelho convexo, refletem os séculos por vir em suas metáforas e silêncios. Fernando Pessoa, o múltiplo, o fingidor sublime, é um desses. Não apenas poeta, mas um fenômeno metafísico, uma entidade literária em estado de combustão permanente. Se a poesia, como dizia Mallarmé, é feita de palavras e não de ideias, Pessoa demonstrou que há palavras que são ideias, e ideias que sangram nas palavras.
Em 1933, pela pena vertiginosa de Álvaro de Campos, um de seus heterônimos mais convulsivos e modernos, Pessoa redigiu aqueles versos que soam hoje como um epitáfio precoce da consciência contemporânea:
“Não sou nada,
Nunca serei nada,
Não posso querer ser nada,
À parte isso, tenho todos os sonhos do mundo.”
Esta confissão não é apenas a lamentação de um eu ferido, mas a clarividência de uma alma que vislumbra o colapso da subjetividade no mundo hipermoderno. Há nesses versos um diagnóstico antecipado do niilismo difuso que hoje corrói o interior humano, travestido de hiperatividade, produtividade e busca frenética por validação. Álvaro de Campos, o engenheiro da sensibilidade exacerbada, não apenas sofre a crise do sujeito, ele a encarna, a dramatiza e a converte em arte, uma arte que sabe do seu fracasso ontológico, mas ainda assim insiste em sonhar.
A genialidade de Fernando Pessoa repousa justamente nesse paradoxo, ele foi muitos, mas nunca deixou de ser ninguém. Cada heterônimo é um desdobramento existencial, um exercício filosófico de individuação literária, e ao mesmo tempo um protesto silencioso contra a noção de identidade fixa, de sujeito uno e estável. Quando Campos declara que não é nada, ele não se anula, ele denuncia. Denuncia a impostura da identidade como algo coeso, a mentira social da coerência de si, e oferece em seu lugar o abismo do ser como condição fundamental da criação.
É como se Pessoa, por meio de Campos, intuísse que o século XXI seria o século do “tudo é possível”, mas também do “nada faz sentido”. Vivemos hoje, como ele antecipou, sob o império dos sonhos desancorados de um eu que já não sabe mais onde começa e onde termina. A subjetividade contemporânea, dissolvida em redes, algoritmos e performances, ecoa dolorosamente essa ânsia de ser tudo, mesmo sabendo que já não se é nada.
Mas em Pessoa, o “nada” não é estéril, não é ausência, é matriz. É desse nada, desse fundo sem chão, que brotam os “sonhos do mundo”. A potência poética da sua visão reside no fato de que ele soube tornar o vazio uma fecundidade. O nada pessoano não é a desistência, é o solo radical da imaginação. Por isso sua obra, longe de ser um lamento, é um gesto de resistência ontológica, um apelo a que sejamos múltiplos, contraditórios e, ainda assim, profundamente verdadeiros em nossa fragmentação.
Enquanto muitos poetas escrevem com as palavras, Pessoa escrevia com as almas. E fazia de cada alma um laboratório de pensamento, um palco metafísico em que os dramas do ser se desenrolavam sem redenção, mas com beleza. Sua genialidade não está apenas na forma, na métrica, na rima ou na estética, está na visão profunda, quase mística, que ele tinha do humano como um enigma indecifrável.
Se Nietzsche disse que só se pode escrever com o próprio sangue, Pessoa demonstrou que também se pode escrever com os fantasmas. E seus fantasmas continuam vivos, sussurrando a cada geração o desconcerto essencial de estar no mundo.
Fernando Pessoa não previu apenas a angústia da modernidade, ele nos legou a chave simbólica para compreendê-la, não com respostas, mas com a sublime dignidade das perguntas certas. Porque há algo de profundamente libertador no reconhecimento de que, embora sejamos nada, podemos sonhar tudo.
E talvez, nessa delicada contradição, resida a centelha secreta da genialidade.

Autor: Eduardo Gomes
Data: 16/06/2025

 

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