Da Pobreza do Riquíssimo! ( Nietzsche )
Dez anos já – e nenhuma gota me alcançou, nem úmido vento nem orvalho do amor – uma terra sem chuva...
Agora peço à minha sabedoria que não se torne avara nessa aridez: corra ela própria, goteje o orvalho; seja ela a chuva do ermo amarelado!
Um dia mandei as nuvens embora de minhas montanhas – um dia eu disse, mais luz, obscuras!
Agora as chamo, que venham: fazei escuro ao meu redor com vossos ubres! – quero ordena-vos vacas das alturas!
Leite quente, sabedoria, doce orvalho do amor derramo por sobre a terra.
Fora, fora, ó verdades de olhar sombrio!
Não quero ver em minhas montanhas acres verdes impacientes.
Dourada de sorrisos, de mim se acerca hoje à verdade, adoçada de Sol, bronzeada de amor – só uma verdade madura eu tiro da árvore.
Hoje estendo as mãos às seduções do acaso, bastante esperto para guiar, tapear
o acaso, como uma criança.
Hoje quero ser hospitaleiro com o mal-vindo, contra o destino mesmo não quero ter espinhos – Zaratrusta não é um ouriço.
Minh’alma, insaciável; com sua língua, já lambeu em todas as coisas boas e ruins, em cada profundeza já mergulhou.
Mas sempre igual à cortiça, sempre bóia outra vez à tona, bruxuleia como óleo sobre os mares morenos: por essa alma me chamam o Afortunado.
Que são; meu pai e mãe?
Não é meu pai, o príncipe Superfluido?
E mãe a gargalhada estrondosa?
Não me gerou esse duplo conúbio, eu, animal de enigma, eu mostro luminoso, eu, esbanjador de toda a sabedoria de Zaratrusta?
Hoje, doente de delicadeza, um vento de orvalho, Zaratrusta está sentado, esperando, esperando, em suas montanhas,
Em seu próprio suco tornado doce e cozinhado, embaixo de seu cume, embaixo de seu galo cansado e venturoso, um criador em seu sétimo dia.
Quietos! Uma verdade passa por sobre mim igual a uma nuvem – com relâmpagos invisíveis ela me atinge.
Por largas, lentas escadas sobem até mim suas felicidades: vem, vem, querida verdade!
Quietos! É minha verdade! De olhos esquivos, de arrepios aveludados me atinge seu olhar, amável, mau, um olhar de moça...
Ela adivinha o fundo de minha felicidade, ela me adivinha – ah! O que ela inventa?
Purpúreo, espreita um dragão no sem-fundo de um olhar de moça.
Quietos! Minha verdade fala!
Ai de ti, Zaratrusta! Pareces; alguém que engoliu ouro: ainda hão de te abrir a barriga!...
És rico demais! Corruptor de muitos!
São muitos os que tornas invejosos, são muitos os que tornas pobres...
A mim tua luz sombra – ela me enregela: vai embora! Tu que és rico; vai! Zaratrusta; sai de teu Sol!
Queres presentear, distribuir teu supérfluo, mas tu próprio és mais supérfluo!
Sê esperto, tu que és rico! Presenteia antes a ti próprio Zaratrusta!
Dez anos já – e nenhuma gota te alcançou?
Nem úmido vento? Nem orvalho de amor?
Mas quem haveria de te amar, ó mais rico?
Tua felicidade faz secar em torno, torna pobre de amor – uma terra sem chuva...
Ninguém mais te agradece, mas tu agradeces a todo aquele que toma de ti: nisso te reconheço, ó mais que rico, o mais pobre de todos os ricos!
Tu te sacrificas, tua riqueza te atormenta – tu dás, não te poupas, não te amas: o grande tormento de força o tempo todo, o tormento dos celeiros saturados, do coração saturado – mas ninguém mais te agradece...
Tens de tornar-se mais pobre, sábio insensato!
Queres ser amado, ama-se somente aos sofredores, só se dá amor aos que têm fome: presenteia antes a ti próprio, ó Zaratrusta!
Poema de Friedrich Wilhelm Nietzsche, século XIX.
Autor: Eduardo Gomes Data: 18/12/2021
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