“Aquele desencontro de gente índia que enchia as praias, encantada de ver as velas enfunadas, e que era vista com fascínio pelos barbudos navegantes recém-chegados, era, também, o enfrentamento biótico mortal da higidez e da morbidade. A indiada não conhecia doenças, além de coceiras e desvanecimentos por perda momentânea da alma. A branquitude trazia da cárie dental à bexiga, à coqueluche, à tuberculose e ao sarampo. Desencadeia-se, ali, desde a primeira hora, uma guerra biológica implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por pestes a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro lado, povos indenes, indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais. Depois, pela dizimação através de guerras de extermínio e da escravização. Entretanto, esses eram tão só os passos iniciais de uma escalada do calvário das dores inenarráveis do extermínio genocida e etnocida.
Para os índios, a vida era uma tranquila fruição da existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária. Claro que tinham suas lutas, suas guerras. Mas todas concatenadas, como prélios, em que se exerciam, valentes. Um guerreiro lutava, bravo, para fazer prisioneiros, pela glória de alcançar um novo nome e uma nova marca tatuada cativando inimigos. Também servia para ofertá-lo numa festança em que centenas de pessoas o comeriam convertido em paçoca, num ato solene de comunhão, para absorver sua valentia, que nos seus corpos continuaria viva.
Uma mulher tecia uma rede ou trançava um cesto com a perfeição de que era capaz, pelo gosto de expressar-se em sua obra, como um fruto maduro de sua ingente vontade de beleza. Jovens, adornados de plumas sobre seus corpos escarlates de urucu, ou verde-azulados de jenipapo, engalfinhavam-se em lutas desportivas de corpo a corpo, em que punham a energia de batalhas na guerra para viver seu vigor e sua alegria.
Para os recém-chegados, muito ao contrário, a vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, que a todos condenava ao trabalho e tudo subordinava ao lucro. Envoltos em panos, calçados de botas e enchapelados, punham nessas peças seu luxo e vaidade, apesar de mais vezes as exibirem sujas e molambentas, do que pulcras e belas. Armados de chuços de ferro e de arcabuzes tonitruantes, eles se sabiam e se sentiam a flor da criação. Seu desejo, obsessivo, era multiplicar-se nos ventres das índias e pôr suas pernas e braços a seu serviço, para plantar e colher suas roças, para caçar e pescar o que comiam. Os homens serviam principalmente para tombar e juntar paus-de-tinta ou para produzir outra mercadoria para seu lucro e bem-estar.
Esses índios cativos, condenados à tristeza mais vil, eram também os provedores de suas alegrias, sobretudo as mulheres, de sexo bom de fornicar, de braço bom de trabalhar, de ventre fecundo para prenhar. A vontade mais veemente daqueles heróis d’além-mar era exercer-se sobre aquela gente vivente como seus duros senhores. Sua vocação era a de autoridades de mando e cutelo sobre bichos e matos e gentes, nas imensidades de terras de que iam se apropriando em nome de Deus e da Lei.
O contraste não podia ser maior, nem mais infranqueável, em incompreensão recíproca. Nada que os índios tinham ou faziam foi visto com qualquer apreço, senão eles próprios, como objeto diverso de gozo e como fazedores do que não entendiam, produtores do que não consumiam. O invasor, ao contrário, vinha com as mãos cheias e as naus abarrotadas de machados, facas, facões, canivetes, tesouras, espelhos e, também, miçangas cristalizadas em cores opalinas. Quanto índio se desembestou, enlouquecido, contra outros índios e até contra seu próprio povo, por amor dessas preciosidades! Não podendo produzi-las, tiveram de encontrar e sofrer todos os modos de pagar seus preços, na medida em que elas se tornaram indispensáveis. Elas eram, em essência, a mercadoria que integrava o mundo índio com o mercado, com a potência prodigiosa de tudo subverter. Assim se desfez, uniformizado, o recém-descoberto Paraíso Perdido.”
Texto de Darcy Ribeiro...