rapsódica”, segundo conceito de Jean-Pierre Sarrazac, liga-se a um fazer poético original, vinculado à
voz e típico de culturas orais.
Ao longo de sua carreira, a intérprete Maria Bethânia protagoniza espetáculos
cujos roteiros são pensados a partir da minuciosa organização intertextual de excertos literários e canções. Estes textos são fragmentados, editados e reorganizados
para a composição de uma dramaturgia integral. Sempre concebidas por diretores
teatrais, as montagens compõem-se de um elaborado sistema de signos em que a
palavra (cantada ou recitada) dialoga com a música, a cenografia, os figurinos, a iluminação e a interpretação, o que exige uma leitura abrangente por parte do espectador.
O resultado é uma obra polissêmica, de caráter autoral, e que precisa ser compreendida por uma potência que extravasa parâmetros do drama tradicional, como a noção de personagem e de fábula. Ela encontra na encenação performática a plenitude
de sua realização poética. Tais traços formais permitem situar o trabalho de Maria
Bethânia como uma ponte entre ancestrais modos do fazer poético e contemporânea.
Para mostrar como se dá esta dinâmica, tomamos o exemplo do espetáculo Pássaro da Manhã, dirigido por Fauzi Arap no ano de 1977. O show foi projetado como
uma espécie de prenúncio da anistia em plena ditadura militar e para chamar a volta
de dois brasileiros exilados: o teatrólogo Augusto Boal e o poeta Ferreira Gullar. A
dramaturgia recorre a temas como a espera, a saudade, a prisão, o regresso. Para
tanto, evoca imagens poéticas, como a das aves que desejam voltar aos lares. A análise estende-se às metáforas visuais concebidas pelo cenógrafo e figurinista Flávio
Império.
A ORIGEM DA POESIA
Em nossa perspectiva, um tanto quanto sincrônica, o que liga as duas pontas deste
percurso - a saber, dos primórdios da poesia ao futuro do drama - é a presença cênica de uma intérprete que, no ato da performance, opera uma simbiose rara entre
música, literatura e teatro. Não é novidade dizer que Maria Bethânia é uma atriz das
canções ou que o palco é o local onde ela grassa. O fenômeno, porém, que nos interessa é o formato de show que a intérprete, na companhia de profissionais das artes
cênicas e da música, concebeu e refinou ao longo dos seus quase 50 anos de carreira.
Interessa-nos, ainda, analisar essa peça por sua relação ancestral com a poesia que
ganha corpo na voz e sobrevive em configurações muito específicas no contexto brasileiro.
Pelo menos desde o início da década de 1970, o que salta aos olhos e aos ouvidos
nos espetáculos de Maria Bethânia é a inteireza. Podemos falar da integridade poética de um roteiro que amarra canções e excertos literários de forma pormenorizada.
Tendo em vista a sua realização cênica, logo percebemos que este grande texto tem
função teatral. Mesmo construída de fragmentos de obras preexistentes, a dramaturgia porta unidade lírica, pois a organização é criteriosa e dela emana um caráter
autoral, atualizado pela performance.
Ao modular a voz em inflexões canoras e recitativas num modelo performático
que envolve todo o corpo, Maria Bethânia parece trazer à tona algo idiossincrático da
tradição poética. Por isso tomamos a liberdade de devassar tempo e espaço para, antes de chegar especificamente no seu trabalho, pensar originariamente o nascimento
comum das manifestações artísticas na realização do fenômeno poético.
No contexto da Grécia Arcaica, encontramos as primeiras referências à poesia que,
antes de ser litera, letra, era apenas som – da voz, da flauta, da lira. Estamos falando
da mítica figura dos rapsodos, artistas que percorrem o solo helênico, de cidade em
cidade, contando e cantando poesias e narrativas.
FAIXAS;
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Texto de Fernando Pessoa com fundo musical: "Até Pensei" (Chico Buarque)
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"Tigresa" (Caetano Veloso)
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Texto de Fauzi Arap com fundo musical "Jogo de Damas" (Isolda / Milton Carlos)
"Um Jeito Estúpido de te Amar" (Isolda / Milton Carlos)
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"Começaria Tudo Outra Vez" (Gonzaguinha)
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"Promessa" (Custódio Mesquita / Evaldo Rui)
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"Gente" (Caetano Veloso)
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Texto de Maria Bethânia / "Há um Deus" (Lupicínio Rodrigues)
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"Terezinha" (Chico Buarque)
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"Cabocla Jurema" (Tradicional / Adpt. Rosinha de Valença)
"Por Causa Desta Cabocla" (Ary Barroso / Luís Peixoto)
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Texto de Clarice Lispector com fundo musical "Um Índio" (Caetano Veloso)
"O Que Será (À Flor da Terra)" (Chico Buarque)
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