Poesias

TEXTOS D TERCEIROS 03       Voltar   Imprimir   Enviar   Email

Marielle ( ALMAPRETA.COM )

Complementando a postagem de ontem, em tópicos, para não fazer textão às 8 da manhã, antes de tomar café:

- O lugar de fala tem razão de ser. É entender que o sujeito poderá falar de si, da sua experiência, na primeira pessoa, com mais propriedade do o outro, que só sabe por ouvir dizer.

- O lugar de fala dessa esquerda identitária não leva em conta que nem todos tenham o dom da "fala". Chico Buarque não precisou perder filho algum para escrever que "a saudade é arrumar o quarto do filho que já perdi". Não precisou ser abandonado pelo homem que amava para escrever "Atrás da porta". O artista é aquele capaz de falar não só de si ou por si, ou pelo que viveu, mas por todos e por cada um - e por aquilo que inventou. O "lugar de fala" nega a interpretação, a elaboração da realidade. O "lugar de fala" nega a arte.

- O lugar de fala trata de não tentar usurpar o protagonismo alheio. De permitir que os sujeitos tenham voz.

- O lugar de fala dessa esquerda identitária não reconhece a existência da pluralidade de vozes.Que cada um seja protagonista do seu próprio ponto de vista. Que a mulher espancada possa falar da sua dor - mas o seu pai também há de poder falar da sua dor de pai, o vizinho terá visto e ouvido a história por outro ângulo, o espancador também será o portador de uma verdade pessoal. O que o lugar de fala dessa esquerda identitária pretende é eleger a voz que deve ser ouvida e calar todas demais.

- O lugar de fala, que surgiu para que os calados pudessem falar, tornou-se uma forma autoritária de mandar calar a boca todo aquele que a esquerda identitária não autorizar como porta-voz legítimo. E essa legitimidade não passa pela capacidade de entendimento, pela habilidade, pela competência - mas pela cor da pele, pela orientação sexual, pelo CEP da residência.

- Pela galera do lugar de fala, Cacá Diegues não poderia ter dirigido Xica da Silva. Jorge Amado não seria um autor legítimo para narrar a saga de Gabriela e de Teresa Batista. Tom e Vinícius são escreveriam que o morro não tem vez. Elis não cantaria Zambi, Clara Nunes não seria a intérprete do Canto das Três Raças, que tampouco teria letra de Paulo César Pinheiro.

- Há mil filmes possíveis sobre a vida e a morte de Marielle Franco. A esquerda identitária quer que exista apenas um. Com roteiro feito por uma lésbica negra favelada, dirigido por uma lésbica negra favelada, fotografado por uma lésbica negra favelada,com figurinos criados por uma lésbica negra favelada - como se Marielle tivesse sido apenas uma lésbica negra favelada e bastassem o lesbianismo, a negritude e a situação de favela para dar conta da sua complexidade.

- Eu, do alto dos meus privilégios de macho branco belo-horizontino, não deveria ter o direito de ter opinião a respeito. Nem mesmo de expressar essa opinião aqui, no meu mural.

- Os racistas são os outros. Os fascistas são os outros.

Agora, sim, bora fazer o café e passear os cachorros.

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Autor: Eduardo Gomes
Data: 06/03/2020

 

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