‘A doutrina do choque’. O tema do novo livro da ativista Naomi Klein
Contribuição do amigo Julio Miranda!!!
Do O Estrangeiro.net
Reproduzimos entrevista com Naomi Klein, que lançou um livro interessante. Pretende unir vários acontecimentos do século XX com mudanças econômicas, tais como as propagadas por figuras como Milton Friedman e Friedrich Hayek. Daí o título das mudanças econômicas associadas a outros acontecimentos: “A doutrina do choque” (com esse vídeo de divulgação). Lá vai (Fonte: Unisinus, dica do Desobediente):
O golpe de Pinochet no Chile. O massacre da Praça de Tiananmen. O Colapso da União Soviética. O 11 de setembro de 2001. A guerra contra o Iraque. O tsunami asiático e o furacão Katrina. O que todos esses acontecimentos têm em comum? É o que a ativista canadense antiglobalização Naomi Klein explica em seu novo livro The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism [A doutrina do choque: O auge do capitalismo do desastre] – ainda sem tradução para o português. Naomi Klein em uma longa entrevista para o sítio La Haine, 27-09-2007, afirma que a história do livre-mercado contemporâneo foi escrita em choques e que os eventos catastróficos são extremamente benéficos para as corporações. Ao mesmo tempo a autora revela que os grandes nomes da economia liberal, como Milton Friedman, defendem o ‘capitalismo do desastre’. A tradução é do Cepat.
O que é exatamente a doutrina do choque?
A doutrina do choque como todas as doutrinas é uma filosofia de poder. É uma filosofia sobre como conseguir seus próprios objetivos políticos e econômicos. É uma filosofia que sustenta que a melhor maneira, a melhor oportunidade para impor as idéias radicais do livre-mercado é no período subseqüente ao de um grande choque. Esse choque poder ser uma catástrofe econômica. Pode ser um desastre natural. Pode ser um ataque terrorista. Pode ser uma guerra. Mas, a idéia é que essas crises, esses desastres, esses choques abrandam a sociedades inteiras. Deslocam-nas. Desorientam as pessoas. E abre-se uma ‘janela’ e a partir dessa janela se pode introduzir o que os economistas chamam de ‘terapia do choque econômico’.
É uma espécie de extrema cirurgia de países inteiros. E tudo de uma vez. Não se trata de um reforma aqui, outra por ali, mas sim uma mudança de caráter radical como o que vimos acontecer na Rússia nos anos noventa, o que Paul Bremer procurou impor no Iraque depois da invasão. De modo que é isso a doutrina do choque. E não significa que apenas os direitistas em determinada época tenham sido os únicos que exploraram essa oportunidade com as crises, porque essa idéia de explorar uma crise não é exclusividade de uma ideologia em particular. Os fascistas também se aproveitaram disso, os comunistas também o fizeram.
Explique quem é Milton Friedman, a quem ataca energicamente nesse livro?
Bem, ataco Milton Friedman porque é o símbolo da história que estou abordando. Milton Friedman morreu no ano passado. Morreu em 2006. E quando morreu, vimos como o descreveram em tributos pomposos como se fosse provavelmente o intelectual mais importante do período pós-guerra. Não apenas o economista mais importante, mas o intelectual mais importante. E é verdade que se pode construir um argumento contundente nesse sentido. Foi conselheiro de Thatcher, de Nixon, de Reagan, do atual governo Bush. Deu aulas a Donald Rumsfeld no início de sua carreira. Assessorou Pinochet nos anos setenta. Também assessorou o Partido Comunista da China no período chave da reforma ao final dos anos oitenta.
Tinha uma visão de sociedade na qual o único papel aceitável para o Estado era o de implementar contratos e proteger fronteiras. Tudo o demais deve ser entregue por completo ao mercado, seja a educação, os parques nacionais, os correios, tudo o que poderia produzir algum lucro. E realmente viu, suponho, que as compras – a compra e a venda – constituem a forma mais elevada de democracia, a forma mais elevada de liberdade. O seu livro mais conhecido é Capitalism and Freedom [Capitalismo e liberdade].
Portanto, o que procuro fazer nesse livro é contar a mesma história, a conjuntura crucial nos qual essa ideologia entrou com força, mas re-introduzo a violência, re-introduzo os choques e, digo que existe uma relação entre os massacres, entre as crises, entre os grandes choques e os duros golpes contra vários países e a capacidade de imposição de políticas que são rejeitadas pela grande maioria das pessoas desse planeta.
Você fala de Milton Friedman. Qual a relação com a ‘Escola de Chicago’?
A influência de Milton Friedman provém do seu papel como o popularizador real do que é conhecido como a ‘Escola de Chicago’. Ele foi professor na Universidade de Chicago. Estudou na Universidade de Chicago e na seqüência foi professor nessa instituição. O seu mentor foi um dos economistas mais radicais do livre mercado da nossa época,Friedrich Von Hayek que foi professor na Universidade de Chicago.
A importância do Departamento de Economia da Universidade de Chicago é que realmente ele foi um instrumento de Wall Street, que financiou muito, muito consideravelmente a Universidade de Chicago. Walter Wriston, o chefe do Citibank era muito amigo de Milton Friedman e a Universidade de Chicago se converteu em uma espécie de ponto de partida da contra-revolução contra o keynesianismo e o novo contrato social com o objetivo de desmanchá-lo.
Qual a relação da Escola de Chicago com o Chile?
Depois da eleição de Salvador Allende, a eleição de um socialista democrático, em 1970, houve um complô para derrubá-lo. Nixon disse genialmente: “Que a economia grite”. E o complô teve numerosos elementos, embargos, etc e finalmente o apoio para o golpe de Pinochet em setembro de 1973. Escutamos muito falar nos ‘Chicago Boys’ no Chile, mas não sabemos detalhes sobre o que foram na realidade.
O que faço no livro é contar esse capítulo da história. (…) Em 11 de setembro de 1973, enquanto os tanques rodavam pelas ruas de Santiago e o palácio presidencial ardia e Salvador Allende era morto, um grupo dos assim chamados ‘Chicagos Boys’, assumia o controle da economia. Economistas chilenos que haviam sido levados para a Universidade de Chicago para estudar com bolsas do governo dos EUA como parte de uma estratégia deliberada para orientar a direita latino-americana.
Tratou-se de um programa ideológico financiado pelo governo dos EUA, parte do que o ex-ministro do exterior chama de “um projeto de transferência ideológica deliberada”, ou seja, levar esses estudantes a uma escola distante, na Universidade de Chicago e doutriná-los num tipo de economia que era marginal nos EUA na época e enviá-los de volta para casa como guerreiros ideológicos.
Começo o livro estudando dois laboratórios para a doutrina do choque. Como disse anteriormente, considero que há diferentes formas de choque. Um deles é o choque econômico e o outro o choque corporal, os choques nas pessoas. E nem sempre acontecem juntos, mas estiveram presentes em conjunturas cruciais. Assim que um dos laboratórios para essa doutrina foi a Universidade de Chicago nos anos cinqüenta, quando todos esses economistas latino-americanos foram treinados para se converter em terapeutas do choque econômico. Outro – e não se trata de uma espécie de grandiosa conspiração – foi a Universidade McGill nos anos cinqüenta.
Em Montreal?
Você falou do Chile, falemos do Iraque da privatização da guerra no Iraque – O governo iraquiano anulou a licença da companhia de segurança estadunidense Blackwater.
Esta é uma notícia extraordinária. Quero dizer, é a primeira vez que uma dessas firmas mercenárias é realmente considerada responsável. Como escreveu Jeremy Scahill em seu incrível livro ‘Blackwater: The Rise of the [Word´s] Most Powerful Mercenary Army’, o verdadeiro problema é que nunca houve processos. Essas companhias trabalham em uma ‘zona cinzenta’, ou são boy scouts e nada lhes acontecia. (…) Isso significa que se o governo iraquiano realmente expulsar Blackwater do Iraque, poderia ser um fato e tanto para submeter essas companhias à lei e questionar toda premissa de porque até agora se permitiu que se tivesse lugar este nível de privatização e de ilegalidade.
Rumsfeld se encaixa nessa tradição. E quando se tornou Secretário de Defesa, agiu como age um novo executivo da nova economia que se viu na tarefa de reestruturações radicais. Mas, o que fez foi adotar essa filosofia da revolução no mundo corporativo e aplicá-la à forças-armadas. (…) essencialmente o papel do exército é criar a percepção de marca, é comercializar, é projetar a imagem de força e dominação no globo – porém sub-contratando cada função, da atenção à saúde – administrando a atenção de saúde aos soldados – à construção de bases militares, que já estava acontecendo durante o governo de Clinton, ao papel que Blackwater desempenha e companhias como DynCorp, que como se sabe, destacou Jeremy, participam realmente em combates.
Como já disse, no Chile, vimos esta fórmula do triplo choque. E eu penso que vemos a mesma fórmula do triplo choque no Iraque. Primeiro foi a invasão, a invasão militar de ‘choque e pavor’ – muitas pessoas pensam no tema apenas como se tratasse de um montão de bombas, um montão de mísseis, mas é realmente uma doutrina psicológica que em si é um crime de guerra, porque se diz que na primeira Guerra do Golfo, o objetivo foi atacar a infraestrutura de Sadam, mas sob uma campanha de ‘choque e pavor’, o objetivo é a sociedade em escala maior. È um princípio da doutrina ‘choque e pavor’.
Agora, o ataque de sociedades em escala maior é castigo coletivo, o que constitui crime de guerra. Não é permitido que os exércitos ataquem às sociedades em escala maior, apenas é permitido que ataquem os exércitos. A doutrina é verdadeiramente surpreendente, porque fala de privação sensorial em escala massiva. Fala de cegar, de cortar os sentidos de toda uma população. E o que vimos durante a invasão, o apagão de luzes, o corte de toda a comunicação, o emudecimento dos telefones e logos os saques, que não acredito que façam parte da estratégia, mas imagino que não fazer nada faz parte da estratégia, porque sabemos que houve uma série de advertências que falava em proteger os museus, as bibliotecas e nada se fez. E depois temos a famosa declaração de Donald Rumsfeld quando foi confrontado com este fato: “Essas coisas passam”.
(…) O objetivo, usando a famosa frase do colunista do New York Times, Thomas Friedman, não é o de construir a nação, mas sim “criar a nação”, que é uma idéia extraordinariamente violenta.
Nova Órleans?
Nova Órleans é um exemplo clássico do que eu chamo de doutrina do choque do capitalismo do desastre porque houve um primeiro choque que foi o alagamento da cidade. E como se sabe, não foi um desastre natural. E a grande ironia do caso é que realmente foi um desastre dessa mesma ideologia de que estávamos falando, o abandono sistemático da esfera pública. Eu penso que cada vez mais vamos ver acontecimentos assim. Quando se têm vinte e cinco anos de contínuo abandono da infra-estrutura pública e do esqueleto do Estado – o sistema de transporte, as estradas, os diques. A sociedade de engenheiros civis estadunidense calculou que colocar em condições o esqueleto do Estado custaria 1,5 bilhões de dólares. Portanto, o que temos é uma espécie de tormenta perfeita, na qual o debilitado Estado frágil se entrecruza com um clima cada vez pior, que diria que também faz parte desse mesmo frenesi ideológico em busca de benefícios a curto prazo e crescimento a curto prazo. E quando estes dois entram em coalizão, vem um desastre. É o que ocorreu em Nova Órleans.
O que a mais horrorizou ao pesquisar a doutrina do choque?