A Paixão de um Triste ( Antônio Cão )
Antônio Cão é um psiquiatra heterodoxo: ao contrário dos demais, que vivem louvando às virtudes locais com a finalidade de angariar clientela, ele prefere seguir na contramão, apontando eventuais aberrações que julga ver (quiçá delirantes!) no belo quadro social onde está inserido, propondo assim, pelo choque de idéias, provocar o que chama de "insights em algumas poucas almas que possam fazer alguma coisa mudar". Posto hoje os cinco sonetos abaixo - com os quais não concordo inteiramente - apenas por solidariedade a um amigo solitário.
A Paixão de um Triste ( memórias de um psiquiatra entre selvagens )
I
Em terra de animais querer ser gente é coisa de quem vive no hospício. Selvagens são loucos por sacrifício de criança, de pobre ou de doente.
Em meio à grei de putas e soldados que compõem a fauna de Natal, os bichos fingem ser bem comportados - teatro de uma quadrilha ancestral. - Uns macacos de mentes pueris decidem o destino a quem trabalha: o Diabo pega cartas e embaralha. O Triste que discordar dos servis nas ruas dia a dia é humilhado, e aos poucos vai sendo crucificado.
II
A via-sacra começou no sertão, pra onde foi o Triste apaixonado. Quem o viu trabalhando pra ladrão julgou que fosse mesmo alucinado. Depois que foi nas ruas arrastado colhendo hematomas pelo chão, por ordens de Caifás delegado despido foi exposto à multidão. Humilhado que foi entre os espinhos e tratado tal qual um indigente, o Cordeiro partiu à beira-mar, alquebrado, mais triste, impotente... Depois a Madalena dos carinhos - que é louca, mas bela e inteligente - ao Triste pôde ver ressuscitar.
III
Nem mesmo ele estando à beira-mar pôde se ver liberto do espinho: virá o bom Jesus para o salvar dos dentes do grande animal marinho? Surpreso, descobriu um novo mal: melhor seria não ser verdadeiro; pois entre os defensores do mental, espíritas ou simples feiticeiros.
O Triste agora é Jonas, e a baleia Orca com seus dentes assassinos é Herodes que devora os pequeninos.
E sempre que celebra a santa ceia com o séquito de amigos qu'inda resta, cai vítima dos macacos da floresta.
IV
Sai mendigando o Triste na cidade porque escravo nunca mais quer ser, e a simiesca e ladra autoridade lhe nega alguns trocados pra comer.
Da terra onde nasceu é socorrido: da família o amor é verdadeiro. Mas claro que aparece algum bandido, cão de faro aguçado pra dinheiro. Pra escapar do amargo dia a dia, ao Triste só resta fazer poesia - o bálsamo para as piores dores. - Por isso a mão pede que registre: crucificado é o homem que resiste na terra onde macacos são doutores.
V
Dia após dia novos dissabores surgem, agora ali, ora acolá, na terra onde os bichos são doutores embora nem bem saibam o bê-a-bá.
Discorrem como grandes oradores com idéias compiladas de alguém, e um séquito de jumentos zurradores baixando a cabeça dizem - "Amém!"
Mas segue dia a dia a passo lento: nas almas desregradas tem alento o Triste que ao labor não abomina. - Até que um dia se apague a sua chama ensagüentando o chão, ou mesmo à lama, nos dentes de uma baleia assassina.
Sonetos de Antônio Cão, (entregues a Antônio Adriano de Medeiros, Natal - RN, nov -2004)
Autor: Eduardo Gomes Data: 14/10/2005
|